Saturday, January 17, 2009

Ah, ganda Gebalis do tempo de Santana!

Paulo Paixão, Expresso, hoje:

O rico negócio das casas sociais
Bingo!
A manutenção de bairros sociais foi paga a peso de ouro, com prejuízo do interesse público

Baguim do Monte, freguesia do concelho de Gondomar, é um lugar recôndito visto a partir de Lisboa, mas de grande importância para alguns bairros da capital. É lá que tem sede a Hidrauliconcept, uma firma de serviços nas áreas técnicas (canalizações, pinturas, carpintaria, serralharia) da construção civil, propriedade de Manuel Nápoles, um destacado apoiante do PSD.

A Hidrauliconcept teve durante anos a parte de leão dos contratos com a Gebalis (a empresa municipal que gere a habitação social em Lisboa), numa altura em que a autarquia era gerida pelos sociais-democratas (2002-2007). A Hidrauliconcept ficou com a manutenção de vários bairros. Alguns negócios celebrados nesse período entre a Gebalis e várias empresas — parte delas da região do Porto — estão a ser investigados pela Polícia Judiciária. São várias as pistas prosseguidas pelas autoridades: corrupção, administração danosa, abuso de poder, peculato. A empresa de Nápoles era a campeã de facturação. Entre 2004 e 2007 (o período áureo) a Gebalis pagou-lhe cerca de €18,7 milhões (valor com IVA). Em 2004, a Hidrauliconcept facturou €3,78 milhões (sem imposto), o que representou 85% das vendas líquidas totais da empresa de Baguim do Monte. Em 2005, a percentagem subiu ligeiramente (86%), com €3,18 milhões. Nos anos seguintes, os valores absolutos foram superiores: €3,95 milhões (2006) e €4,69 milhões (2007).

As remessas começaram a chegar numa boa altura. Em 2003, Nápoles vivia “tempos difíceis”, depois da falência da Aquafluidos. “Identifiquei uma oportunidade de negócio, a manutenção e recuperação de bairros que estavam num desleixo absoluto”, disse esta semana ao Expresso o empresário de Baguim do Monte, sobre a realidade que detectou em alguns dos 70 núcleos de habitação social de Lisboa. Começou a “trabalhar à experiência”, em 2003. “Eles gostaram e assinámos contrato em 2004”.

De vento em popa E o negócio floresceu. Igualmente pródiga é a sucessão de pontos controversos quando se analisam hoje os negócios entre a empresa municipal e alguns dos prestadores de serviços — estando a Hidrauliconcept longe de ser o caso único.
O fraccionamento sistemático de empreitadas, sem justificação, para fugir ao concurso público leva uma fonte judicial a afirmar que o esquema “faz lembrar os tempos da Junta Autónoma de Estradas”.

O convite privilegiava quase sempre um grupo restrito de empresas, do qual saía o vencedor, normalmente por um preço acima do inicial.

No resto, as várias situações detectadas em investigações internas da Gebalis ou em auditorias camarárias — entretanto remetidas ao Ministério Público — são um cardápio que ilustra o engenho da má gestão de dinheiros públicos. Desde adulteração do valor-base para concurso por “pressão” das propostas das empresas à existência de preços distintos em duas propostas para a mesma empreitada, passando por autos de medição e facturas de fases muito diferentes de obra (como se fosse possível num mesmo mês fazer o tosco e o acabamento) — tudo isto era moeda corrente.

Quando havia um desvio em relação ao orçamento ou à regra instituída, tal traduzia-se sempre em mais gastos para o erário ou em outro tipo de prejuízo para o interesse público. Poucos casos exemplificam esta inversão de escalas, extensiva a outras empresas, como o que se passava no funcionamento das equipas de manutenção da Hidrauliconcept.

A empresa de Baguim do Monte tinha dispersas as equipas por vários bairros. Umas catalogadas como “normais”, outras como “extra” (pagas a dobrar, pois acorriam às emergências). Simplesmente, o último formato tornou-se a regra, e o primeiro meramente residual. Em 2007, a Gebalis pagou à Hidrauliconcept por trabalhos-extra seis vezes mais do que pelos serviços ditos normais.



Às tantas, a empresa municipal já nem sabia bem o que pagava. Com efeito, segundo fonte ligada ao processo, as facturas emitidas pela Hidrauliconcept eram tão vagas na discriminação do serviço que, em muitos casos, se tornava virtualmente impossível apurar se o mesmo fora feito — apesar de ser quase automática a autorização do pagamento pelos serviços da Gebalis. Manuel Nápoles responde de forma categórica: “Tudo que que facturei fiz”.

Números em revisão


O statu quo foi alterado pela actual administração, nomeada já pelo executivo de António Costa. A empresa municipal diz que paga muito menos — €586 mil em 2008, contra €5,7 milhões no ano anterior (valores com IVA) —, prestando a Hidrauliconcept o mesmo serviço. Em fase de acerto de contas são fatais os desencontros de números. Inicialmente, a Hidrauliconcept pretendia facturar à Gebalis em 2007 cerca de €7 milhões (valor referido na edição passada).
No entanto, tal montante é agora corrigido pela empresa municipal. São várias as parcelas de abatimento. Para alguns documentos são consideradas outras datas de facturação. Por outro lado, a Hidrauliconcept emitiu notas de crédito. E a Gebalis não reconhece a existência de trabalhos no valor de €250 mil, sendo que a Hidrauliconcept reclama uma dívida maior: €650 mil, mais juros.

É nestes esquemas enredados, com contratos leoninos, que se centra a investigação da Judiciária. Manuel Nápoles explica o quadro sem argumentos retorcidos. “Era um negócio com margens mais favoráveis do que com outros clientes. A mim cabia-me defender os interesses da minha empresa, não da Gebalis”.

O contrato de prestação de serviços, para manutenção e conservação de seis bairros sociais, entre a Hidrauliconcept e Gebalis foi assinado em 2004. Eduarda Ribeiro Rosa presidia ao conselho de administração. Confrontada com a leitura que o outro outorgante faz agora do negócio, diz que se era “vantajoso para a Hidrauli, também seria para a Gebalis”.

Helena Lopes da Costa, vereadora que tutelava a Gebalis nessa altura, distancia-se. “Nunca falei com Manuel Nápoles sobre qualquer obra ou qualquer bairro. Não era essa a minha função. Para isso é que há empresas municipais”. E sobre a avaliação feita pelo empresário, a demarcação é ainda mais explícita: “Não posso fazer comentários porque nunca adjudiquei nada. Isso era competência do conselho de administração. Se fosse eu a decidir, nunca permitiria condições vantajosas a ninguém. Se alguém o fez, terá de responder por isso”.
ANEXOS
Projectos pagos ainda por concluir


Cotefis e Duolínea, projectistas e fiscalizadores, duas empresas e uma só. A Gebalis pede trabalhos que já deviam estar prontos.

Na constelação à volta da Gebalis, há estrelas gémeas: a Duolínea, Arquitectura e Engenharia, Lda; e a Cotefis, Gestão de Projectos, SA. Pertencem às mesmas pessoas e realizam ambas trabalhos de projectos e de fiscalização.
Segundo o relatório de uma comissão de avaliação interna, Duolínea e Cotefis facturaram em conjunto, em 2005 e 2006, cerca de três milhões de euros. Um procedimento em que se “desconhecia qualquer processo de adjudicação”. Mas peculiar ainda é o facto de, segundo fontes da Gebalis, haver situações em que a Duolínea fiscalizava projectos da Cotefis, e vice-versa. E para agilizar o expediente, o engenheiro que assinava as fiscalizações era a mesma pessoa. António Fernando Oliveira, líder das duas empresas familiares, não foge às evidências: “Admito que isso possa ter acontecido num caso ou noutro”.

A relação do eixo Cotefis/Duolínea com a Gebalis é hoje menos intimista. A empresa municipal reclama que projectos pagos em 2006, envolvendo mais de um milhão de euros, “nunca foram realizados ou, na melhor das hipóteses, nunca foram entregues à Gebalis”. Oliveira reconhece que “há trabalhos que não foram totalmente concluídos. Temos a consciência do nosso dever: recebemos honorários e nunca acabámos os projectos, embora por motivos que têm de ser imputáveis à Gebalis. Além do mais, mudou a legislação, o que obriga a rever algumas partes já realizadas”.
Para o futuro, Oliveira diz que a empresa está “interessada em acabar o trabalho (na próxima semana entregaremos mais dados). O processo requer agora diálogo e cooperação”.
Estranhos métodos de trabalho

Há situações no relacionamento da Gebalis com a Hidrauliconcept que desafiam a imaginação. Eis amostras de um rico catálogo
SIMPLEX NA FACTURAÇÃO
No recurso às equipas-extra, para reparar o rebentamento de um cano, por exemplo, um procedimento prévio estava arredado da prática. Em princípio, cada serviço urgente deveria ser antecedido de uma requisição (ou ao menos de uma comunicação telefónica). De início, ainda era preenchido tal documento, aposteriori, de acordo com a factura; depois, até esse “incómodo” foi abandonado. Faziam fé os números e a descrição estabelecida pela Hidrauliconcept.
UM RIO DE TINTA
Em dada altura, a Hidrauli passou a fornecer as tintas à Gebalis. Segundo Nápoles, de acordo com uma tabela, com “preços de mercado”, apresentada por um director da empresa municipal. Uma investigação interna da Gebalis apurou que uma determinada tinta (marca Tintal) era paga pelo dobro do que podia ser encontrada numa grande superfície. Nápoles explica que a sua tinta, mais cara, era de melhor qualidade, o que permitia usar menos quantidade para o mesmo espaço.
MATERIAL COM TAXA DE 10%
O custo das brigadas de manutenção não contemplava o material (fechaduras, torneiras, parafusos, dobradiças), que era pago à parte. Sempre acrescido de uma taxa de 10%, para custos administrativos (sobre uma tabela que a Hidrauliconcept elaborava). Com dois pormenores: as peças ficavam armazenadas em espaços da Gebalis; e à empresa municipal era tudo facturado logo que chegava ao armazém, não na data de instalação.

Senhor de Armamar, amigo de Barroso

Manuel Nápoles sempre foi um activo militante do PSD, em Gondomar, mas só no período do barrosismo saltou do anonimato. Com ligações familiares a Durão, surgia ao seu lado nas visitas que o então líder fazia ao Norte e chegou a ter assento no Conselho Nacional do partido. Esse foi o seu único cargo político. Crítico de Ferreira Leite confessa, em privado, que não sabe se votará no PSD nas próximas legislativas. É na sua vasta quinta em Armamar, confinante com o Douro, que regularmente recebe os seus amigos da política em animados convívios. Seduzido pelo local, Luís Filipe Menezes até já comprou uns terrenos vizinhos para construir uma casa de campo. Em 2002, a sua actividade empresarial sofreu um rude golpe. A sua Aquafluidos, especializada em canalizações, é arrastada pela falência da Ecop de que era fornecedora. Foi por água abaixo, está na fase de liquidação judicial. Dessa altura, ficaram litígios com o Fisco por retenção de IVA que seguem em Tribunal. No ano seguinte, lança a HidrauliConcept e bate à porta dos amigos para se relançar nos negócios. O contrato com a Gebalis é uma bênção. Habituado a margens apertadas, rejubila com os lucros fartos da sua operação Lisboa. Transfere-se para a capital, o que lhe valeu o corte de relações com o sogro.

Portas da Gebalis abertas pelo PSD

Manuel Nápoles chegou ao universo da Gebalis pela via partidária. Foi apresentado por Helena Lopes da Costa, na altura vereadora, ao então director-geral da empresa, Sérgio Lipari Pinto. “Entrei por cima”, reconhece Nápoles. A ex-autarca, hoje deputada, conta como as coisas aconteceram. “Os bairros sociais estavam muito degradados. Em conversa informal com o Jorge Costa, que fora vereador da Habitação em Gondomar, perguntei-lhe como tinham controlado o problema. Ele mencionou o tipo de manutenção que era feito, por empresas do Nápoles. Depois, falei do Nápoles ao Lipari. A partir daí não sei o que se passou, pois o assunto foi tratado pela Gebalis”. Lipari Pinto confirma que foi apresentado a Nápoles quando era director-geral, mas o relacionamento ficou-se por aí: “Nunca tive qualquer reunião de trabalho ou tratei de alguma obra com ele. Relacionou-se sempre directamente com o conselho de administração e a direcção de engenharia”. Entre Dezembro de 2006 e Maio de 2007, Lipari foi o vereador responsável pela Gebalis. Se para o autarca a relação com Nápoles foi distante, para o empresário gerou incompatibilidades. O empresário disse que Lipari (então presidente da Junta de Freguesia de S. Domingos de Benfica) lhe propôs um trabalho (Nápoles não quis dizer qual) para a autarquia, cuja factura deveria ser apresentada à Gebalis. O ex-vereador desmente. “É completamente absurdo, não corresponde minimamente à verdade. Só pode tratar-se de uma difamação”. Se a entrada de Nápoles na Gebalis passou pelo estreito corredor partidário, é também a dinâmica interna, resultante da luta entre facções, a destapar os cantos que apontam para a porta de saída.

P&R

O que é a Gebalis?
É uma empresa municipal, que gere a manutenção dos 70 bairros de habitação social de Lisboa. Um universo de cerca de 23 mil fogos, nos quais vivem para cima de 80 mil pessoas. A Gebalis não constrói: assegura a conservação dos edifícios existentes. Para essas tarefas é feita a contratação de empresas exteriores. A administração da Gebalis é nomeada pela autarquia; a empresa está organizada em gabinetes de bairro, arrumados em cinco grandes zonas de intervenção.
Qual o papel da Hidrauliconcept?
É uma empresa que presta serviços nas áreas técnicas (pintura, canalizações, carpintaria, serralharia; excluindo a electricidade e os elevadores) da construção civil. Tinha equipas de manutenção, às quais foram entregues seis bairros. Alguns pormenores do relacionamento com a Gebalis estão mal explicados e o que se sabe indicia uma fraca defesa do interesse público.

Manuel Nápoles tem ou teve outros negócios com a Gebalis?
Na sede da Hidrauliconcept está domiciliada outra empresa (Serviall), que facturou à Gebalis quase um milhão de euros em 2005. Manuel Napóles diz que os seus negócios com a Gebalis se resumem à Hidrauliconcept, já que no ano em que a Serviall facturou à Gebalis era ainda propriedade de um primo, a quem a adquiriu apenas em 2008. Nos registos de propriedade da Serviall não figura o nome de Manuel Nápoles — mas sim o de um vogal do conselho de administração da Hidrauliconcept.
O que está a ser investigado? Quantos processos há?
Há pelo menos três processos. Em dois deles já foi proferida a acusação. Num, contra o ex-director de engenharia, Luís Castro, por alegadamente ter usado meios ao serviço da empresa em proveito próprio. Noutro processo são arguidos os ex-membros do conselho de administração Francisco Ribeiro, Clara Costa e Mário Peças, aos quais são imputados os crimes de peculato e gestão danosa.
Que relações existem com o poder político?
Todos os negócios eram celebrados entre as empresas e a Gebalis. Nenhum autarca (presidente ou vereador) tem uma relação directa com obras adjudicadas. Apenas a responsabilidade política de tutelar uma empresa municipal, cujos responsáveis eram nomeados por si (ou, não tendo sido, a sua permanência no cargo dependia do poder municipal eleito). No período em apreço, a Câmara de Lisboa foi gerida pelo PSD, em certa altura em coligação com o CDS.

Quantas administrações teve a Gebalis no período sob investigação?
Duas. A primeira liderada por Eduarda Ribeiro Rosa (2002/ /2006); a segunda por Francisco Ribeiro (2006/2007). No executivo municipal, a tutela da Habitação foi assegurada, sucessivamente, por Helena Lopes da Costa, Maria José Nogueira Pinto e Sérgio Lipari Pinto.

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